segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

O canto do cisne

Fortaleza teus olhos brilham com intensidade
à luz da lua e o céu da cidade!

Apreensão é dona da alma,
alegria é brilho e impacto.
o entusiasmo efusiva a calma,
as luzes abrem a cena, inicia o ato.

Abrem-se as cortinas,
o espetáculo é magnífico!
O céu o lago espelha, os cisnes dançam,
ao pirouette, ao adágio entrançam.
O grand jeté, a sublimação.
A paz, o allegro e a luz,
o grand allegro a intensidade seduz,
o fouetté às águas em revolução.

São belos passos, são graciosos.
Ao palco leve tocam harmoniosos.
Na beleza do corpo contorço
não se percebe a força
do árduo trabalho da moça.
A graça delicada cortina o esforço.

No ensaio de cada dia,
a persistência, a disciplina sadia,
e a qualidade aperfeiçoam o artista.
Testemunham o suor e o tempo,
só nos revelam no mágico momento
ao espetáculo, às luzes e à vista!

A arte brinda, o momento é de festa,
ao júbilo e olhos em expressão como esta.
À comoção já delineia o movimento,
desliza suave a bailarina,
às cores a beleza descortina,
o canto do cisne, o último alento.

Mas vem a noite de um dia,
nem lua, nem noite sabia.
Uma bala sem disfarce ferina,
Mísera bala não perdida,
de Brasília é conhecida,
é disparada contra a bailarina.

Tinem os gládios, a futilidade,
a boçal cumplicidade
e covardia do prepotente.
A barbárie e vilania à razão se ocupam.
Homens ocos não se preocupam
com o valor da vida e morre o inocente.

Fortaleza teus olhos choram,
o coração assiste,
o estarrecer da rua, esta noite é triste.

Meu Deus, uma jovem bailarina!
Tão jovem tão linda!
Eu choro a ternura e canto a dor,
maldigo o homem que o tiro desfere,
a arte e a candura exaure,
rouba a vida e deixa o horror!

Só a mente insana,
capaz de estupidez tamanha,
por motivo fútil, notório e fugaz,
se arma de violência,
abuso e prepotência,
ao instante lhe brutaliza mordaz.

Tal era a ânsia de matar,
obsessão e fúria não o fazem pensar.
Tão logo na avenida emparelha,
sem que ao fato o júri releve,
a intenção lhe foi a mais breve,
pelos vidros dispara besta fera.

De frieza própria do grotesco,
moldura quadro dantesco,
mas o remorso lhe mostre vida ferina,
homem sinistro e escuso,
já que à índole se fez uso
assassino de uma bailarina.

De qualquer forma,
o homem que empunha uma arma
ao testemunho olhos da rua,
aponta a um casal e gratuito dispara,
senão este que outro nome terá
se a única arma era a sua?

O pai do algoz: Todo dinheiro gastarei!
A mãe de Renata: Só conheço o limite da lei.
A soberba insinua a própria arrogância.
Os limites da força é a demonstração,
à cidade se impõe humilhação,
métodos próprios da violência.

Em meio às agruras da cidade,
lutar sem temor pela verdade
contra o teatro que encena,
a mentira que se instala,
ouvidos surdos, a boca que cala,
esta luta deve valer a pena!

Onde está teu coração, cidade,*
Permite a vilania e a maldade
desonre tua alma, à vergonha atiça
e o demônio deixe o vazio e a dor?
Onde está teu amor,
que foi feito da justiça?

Sei a dor da perda do filho,
a vida nos priva seu brilho.
Agora dedicada artista perde a cidade
por um crápula à solta,
mais eu penso mais me revolta
na luta desigual dos pais pela verdade.

É preciso que muito se reflita,
ao bem a verdade seja dita.
A revolta do coração se apossa,
um maldito, o infortúnio e a sorte,
ao rumor de sangue e de morte,
a filha poderia ser nossa!

A dor é imensa e é grande o desgosto,
a consciência do júri não lhe mostra o rosto.
Palavras esquivas, a decência abomina,
porque o racional não absorve,
a justiça a vida não devolve,
e pasmem se a soltura o juiz determina.

Argumentem o que argumentem,
os fatos ao óbvio não mentem.
O ininteligível aqui se exemplifica,
à opinião a verdade mascara,
dá um sôco na nossa cara
e ao coração petrifica.

A torpeza é o espectro da violência,
a injustiça insulta a consciência.
A impunidade respalda monstros e horrores,
a responsabilidade é de quem tem o dever,
ao cidadão o direito de dizer:
Será que não sabem estes senhores?

Mas monstros mesmo
fazem da verdade o ermo.
Os senhores, os que maculam a toga!
De monstros permitem a impunidade,
a infâmia sobre nossa cidade,
sabe-se lá do que em troca!

A reflexão estarrece os sentidos,
assim incrédulos aturdidos,
afinal que valor tem a vida?
Que sociedade é esta,
sinistra e funesta,
Se com facínoras convive e abriga?

Sinto vergonha do meu país podre!
Tão belo tão podre!
Indigna saber estes fatos.
O grito do escárnio estremeça as mentes
de homens gelados e postura indecente.
De homens assim só se sente asco!

Estes são limites da tolerância
ante desonra que avança.
Do homem os valores corrói
tal fétida carniça,
pois sem justiça
nenhuma nação se constrói.

A esperança é a luz de uma canção,
Mas resta indignação
ao homem que perde o encanto
se falha a moral, a justiça e a ética,
os princípios em que se credita
para sociedade justa e da liberdade um canto.

Fecham-se as cortinas,
termina o espetáculo.
Não há aclamação para este ato,
o cisne morreu de fato.

Se a injustiça denigre a nação,
das bibliotecas rogo o maldito,**
dos céus lhes caia o pesar infinito,**
ficam a dor, lamento e indignação.

A justiça dos homens é sábia.
Dito assim parece até que nos conforta.
Pode até errar mesmo sábia
e a bailarina está morta!

Fortaleza teus olhos choram, o coração assiste
as lágrimas da vergonha, esta noite é triste.

Fortaleza, 01 de dezembro de 1999
Poema para Renata Braga, a bailarina
assassinada na Avenida Beira-Mar
em Fortaleza na madrugada
de 28 de dezembro de 1993,
apresentado às Rodas de poesia
no Centro Cultural Dragão do Mar em 28.12.1998
com a presença das entidades contra a violência, amigos e parentes de Renata.
O assassino continua impune.

Agradecimentos
Ivaldo Milhomem Roland,
Oneide Braga de Carvalho(mãe da bailarina),
Escola de balé Madiana Romcy,
Antenor Barros Leal,
George Júnior Barros Leal,
e aos transeuntes anônimos
da avenida Beira-mar.
*Thiago de Mello, A cara da cidade.
**IR, versos do poema Fortaleza.

Dedicado a: Renata Braga, 20 anos, bailarina. Assassinada em Fortaleza em 28 de dezembro de 1993.
Data:
21/11/2001

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