sábado, 12 de dezembro de 2009

Jericocoara




O sol diz adeus ao dia,
Últimos dourados espelham o mar.
Cabelo solto ao vento assobia,
Seio exposto bocas a beijar.

A lua gira no céu a cabeça turva.
A luz agoniza e delineia.
Das alvas dunas e sereia,
Ainda revela o macio das curvas.

Vastidão de areias e mar,
Lua cheia agora sozinhos.
A brisa e o farol são vizinhos,
Lampeja, já toca o mar.

Passeiam por sobre o mar,
O vento terral e a lua.
Refresca e brilha no olhar
Da sereia a silhueta nua.

Abraçam carícias e o vento frio.
Pelo corpo as mãos e o carinho.
Sinto da tez e o arrepio,
Teu cheiro úmido do ar marinho.

Pássaro beija rosa orvalhada.
Perfumes, pétalas, ato de amar.
Suavizam o silêncio as ondas do mar,
O êxtase à flor eletrizada.

Cintilam as estrelas a voz geme,
Jogam as coxas à noite enluarada.
Teu corpo toda a terra treme
Em doce nudez iluminada.

Pairam sobre a terra a noite e a fera.
Arde teu ventre queima a areia,
Chama ardente e ao fogo ateia
O calor de um só corpo na esfera.

Fere sutil a noite e o clima,
Enquanto o abraço apertado
À cintura e o seio beijado,
Rara nave voa lá em cima.

A paz repousa sob o céu,
O amor e os dois vão à vila.
Caminham em noite tranquila
Ao luar as estrelas ao véu.

Seduzem e encantam o lugar
A atmosfera de magia.
Na orla a alegria,
O morno banho de mar.

Teu amor e na água espelhada,
Do brilho que se vê agora,
Da lua por esta pedra furada
À espera estes versos e a hora.

Só o riso, a música do mar
Com os dois seguem a trilha,
A lua branca que brilha
E noturno meteoro a vagar.

A vida calma o mundo é distante.
Paisagens a perder de vista,
Em torno é livre o horizonte,
A mente viaja ao coração conquista.

Brasileiros, muitas pessoas,
Gente do mundo inteiro,
Vêm de janeiro a janeiro,
Ver o mistério, dunas, lagoas.

A virgem natureza
De mutáveis areias.
Dunas em lagoas permeia
Em sítio de rara beleza!

A América guina a oeste e esquiva
Para o sol belo se pôr aqui,
Em quadro que à memória viva
Na breve palavra sintetiza Jeri.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Cidade pequena

Grande sol do Equador
Percorres os confins da Via Láctea,
Ainda assim não iluminas
De razão esta cidade.
Mal crescida, a paz já nos devora.
Monstro nos labirintos, desalento.
Revelas da aflição a face horrenda,
No pervertido triste olhar de tuas meninas,
Vendendo corpo débil agora aos bandos,
Ainda sem seios nas esquinas.
Enquanto ao lado desfila o desprezo
Da riqueza ilícita de cofre público,
Das fortunas do contrabando.

Chora pelas bordas, na praia,
O descaso a teus filhos
Por malditos de índole e de laia.
Chora tua vergonha e dor,
Por água suja que sempre aflora,
Como sangue infecto
Vertido de tuas veias.

Que falsos ilustres
Corações insinceros
Tramam em tuas teias!
Quem à opinião insulta e mascara
E desfigura tua geografia?
Quem tuas cartas avilta
E de tua terra se apropria?

Quem aliena tuas almas,
Monumenta o palácio
Pelo fausto disfarce dos lustres?
Quem te impõe iméritos espaços
Sem democracia?
Que política do passado e de agora
Vendeu pedaços de tua alma?
Que te fizeram dos rios, dos mangues,
Da vida, da paz, das praças,
Cidade pequena de ladrões?
Que verde te suprimiram de eterno!
Que bela máscara às pressas,
Esconde na orla
Teu sofrimento interno!

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Jangada

Nave primitiva, não imagina
Quem na água a vê, o árduo afã
De homens que sabem vã
Pode ser da viagem a rotina.

Que na orla cedo inicia
Quando quebra no barco a vaga,
Fá-lo subir e ligeiro esmaga
A mesma água que singra e acaricia.

Suspense é o momento que assiste,
Que faz fluir o sangue
Como mar no mangue,
Quando da força a maré insiste.

Mas ganha o mar a vela,
Sujeita às forças que lhe espreitam.
O sol e a lida por vir esperam,
Urge-lhe a vida e não protela.

Só ao longe, muito longe some,
Aos olhos só cansam e não vêem,
Após a fadiga do percurso terem,
Fixa-lhe o lugar a fateixa é o nome.

A praça da faina tem sua vida.
O sono úmido no convés se reveza
Pela cavala que ao sorriso embeleza,
Após luta, já sangra combalida.

Ao peixe no convés molhado,
Que fisgado é alimento e dinheiro,
Após abrasar dia inteiro,
O que foi chão também é telhado.

Neste chão que a vaga lava,
Onde a paz cozinha a comida,
Testemunha garra desmedida,
Que só se revela ao céu e à água.

Mas se lhe acirra a vaga o temporal,
Onde quer que a vista aponte,
As vagas roubam o horizonte
E tão forte se mostra esta nau!

Suspense é o momento que assiste,
Que faz fluir o sangue,
Que faz com que o mar se zangue,
Quando da força a tormenta investe.

Impiedosa o costado lhe espanca.
Rasga-lhe já remendada vela,
Brutal lhe parte a retranca,
Um faz falta, mas não singra sem ela.

Meninos ainda se fizeram ao mar,
Homens rijos, de vida simples,
Em farrapos sem que se queixem,
Curtidos ao sol, ao perigo do alto mar.

No mar que absorve uma vida,
Segue a incerteza a nave pluma,
Vela curva ao vento a valuma
No deserto de água a vida.

A necessária alegria

Quem, por seu motivo,
Ao coração da alegria o fluxo,
Análogo ao vinho se lhe retira o mosto,
Sentirá breve em seus dias,
A vida lhe diminuir aos poucos.
E mais à pele o sentimento,
Verá se esvair de todo.

Intrigado,
Só agora pude entender,
Como e porque
Morre-se de desgosto.
Sem vontade, sem sonho,
Sem prazer, sem o gosto.
Assim um rio secando
Flui menos a beleza e a força.
O rio é como nós somos:
A água abandona o rio,
Deixa lágrimas no barranco.
A alma abandona o homem,
Como a água a vida
Se nos vai de pronto.

Filha

Filha minha,
Sorriso de doçura.
Sim, sangue do meu sangue,
Ternura do meu sonho.
Pura, linda,
Amor de menina.
Assim luz e névoa mais branda
Ilumina doce as horas do meu sono.
Quando todo dissabor retira breve,
Se tua visita alegre
Retorna à casa mais querida.
Ainda que cedo o inesperado
De ti me apartou a vida,
Bem cuidado é teu jardim,
Teu aposento da memória.
Este ano fazes teus vinte e um anos
E eu já sou avô sem neto.
Enfim, desta feita,
Dissipa-se a amargura
E do tempo a resignação aceita,
Mas não lhe tributa.
Ainda que me espreite
Sua implacável força e o olvido.


À memória de Renata Roland

A mulher que ama

Infeliz, um homem disse:
A mulher não é
Para ser compreendida,
Apenas amada, disse.
Mas se nos ama,
(Amar, eterno e único seja o verbo!)
Em sã consciência e afeto,
Não será compreendida?
E não é o sentimento domínio da bonita.
“Quem é belo é belo aos olhos e basta;
Quem é bom é subitamente belo”.*
Um poeta que ao amor cantou,
Por devaneio ou descuido,
Dos muitos versos de uma vida,
Não relevou ainda,
Porque sem dúvida,
Embora “hay más bellas que tú, más bellas”,**
A mulher que amamos,
A mulher que nos ama será linda!

*Safo de Lesbos
**Pablo Neruda

Por prazer ou pela sina

Semeio versos
Por prazer ou pela sina,
Tal o jardim aviva
Com o esplendor da rosa
Pela roseira que se rega,
Que aos olhos é prenda
Pelo trabalho que se emprega.
Mas emoção só flui das cores,
Ou perfume que se espera.

E não só de água é o chão,
Nem fértil só de verde é a terra,
Pois de algo além precisa.
Também ao ser se pelo verso se alegra,
A alma à sensibilidade se entrega.

E não me culpo se pelo esforço vão,
O que de triste a vida ensina,
Se por mais que o orvalho regue
Ou por mais chuva que caia,
Não se tira leite de pedra,
Tampouco brotam pétalas da cinza!

A vida imita a arte

"Quão breve é toda vida humana,
já que de toda a multidão
que trouxe a estas praias,
nenhum viverá dentro de cem anos".1
O que fazer em tão pouco tempo?
-"Trabalhar na beleza que perdure", 2
"para atingir a idade da realização,
para ser feliz.
Não vale sair antes do jogo terminar".3

A beleza física é um perfume raro,
irrestível, dona de admiração dos olhares.
Mas passa-se o tempo, passa-se a vida,
exaure-se em nada em vento ralo.
E em que diferem dois rostos,
o feio e o belo?
Por suas imagens refletidas,
Seguramente diz o velho espelho:
-Só a aparência!
Pois o feio e o belo,
a dolorosa feiúra que assombra
e a encantadora beleza que embevece,
o tempo as consumirá,
sem distinção, reserva ou pressa,
pois de igual matéria são da mesma.

Restará sempre dois rostos de ancião.
Assim de dois rostos em que diferem então?
Dirá este juiz, sábio e implacável,
que é nada e é tudo e é tempo,
que passa e perdura,
imutável e sem fala!
-Só o saber!
"Quem é belo é belo aos olhos e basta.
Quem é bom é subitamente belo".4

Morrer é inevitável, isso é certo.
A muitos só a fortuna importa,
e dela fazem sua vida e escopo.
A boa fortuna é sim boa virtude.
Realizamos projetos, nos dá conforto,
mas ao espírito não preenche,
sozinha não basta,
pois além de algo precisa.
"E tantos a tiveram, quem foram?
O que fizeram?"5
E ainda alguns que a tiveram,
se fosse o fim e não um meio,
por que o desastre
e suicídio cometeram?
Só alguns, de alguma forma,
deixam ao mundo alguma poesia,
Um tributo à vida
de grande importância ou singelo.
Uma pintura rupreste; a coluna grega!
De Camille Claudel, um torso de mármore
com o nome de Rodin.
De uma revolução,
a liberdade, os direitos,
os estatutos do cidadão!6
Uma música de Villa-Lobos ou Paganini;
de Safo, um pergaminho de poema;
de poetas quantos versos!
Uma teoria sobre o universo!

Assim o saber, a poesia, a arte,
a beleza que persiste,
é registro de vida e de belo,
que o tempo respeita
e abriga de eterno!
A arte, a poesia, o saber,
da vida, essencial é a parte,
pois que apenas "a vida imita a arte".7

1 palavras de Xerxes, sétimo livro de Heródoto.
2 Thiago de Mello.
3 O Belo e o Bom, Safo de Lesbos.
4 Tom Jobim
5 do poema A vida é Breve, a Poesia é Eterna.
6 Robespierre.
7 Oscar Wilde.

Letras e Jasmins (Poema arrumadinho)

Tuas palavras são flores,
Tua voz é meu jardim!
Por sobre as pétalas, as letras,
Como abelha que zumbe,
Vão voando, vão pousando,
Dos meus beijos as borboletas.
Atraídos pelo perfume
De sempre-vivas e jasmins,
Madressilvas e violetas.

Nas manhãs dos dias orvalhados
Pelas palavras que me diz,
Como gotas em meu jardim,
Brilham letras de todas as cores!
Meu coração completamente feliz
Tem por elas teu nome cantado
Em sonhos mais doces de amores!
Onde meus olhos de rouxinóis
Enternecem-se encantados,
Beijando néctar da tua voz!

Para Denize Tiziani

Sombras e pó

Um homem presumiu uma lei ao universo
E sobre o mundo, durante séculos,
Acreditou-se ser decisivo
Seu régio discurso.
Por outra lei foi enfim contraposta,
E por sua vez, sucessivamente por outras,
Filtrando-se o que de valor antecede.

A essência é sempre volátil,
Sempre se perde o essencial.
Em nossas palavras só se aproxima.
Apenas por determinado instante
Acrescenta-se um pensamento
Cuja suspensão fica à mercê
Da curiosidade de quem há de vir.
A verdade só ao lume persevera.
Transforma-se a lei e fica o astro
E todas as coisas que do nume
Pertencem à eternidade.

Ninguém há de espelhar o mundo.
A ninguém é dado mais que um frágil limiar,
E “nunca houve mais começo que agora”,*
Para a “sempre ânsia procriadora do mundo”.*
O conhecimento se acumula e é mutável.
De louros não conferem à vaidade
Mais que sombras e pó
as vastas bibliotecas.

*Walt Whitman.

Cecília Mutilada

Não canto porque o momento é triste.
E se não corro pelos canteiros,
Pois do verso o gosto nem tão verdadeiro
E do que era alegre está bem triste.

Ter no mato o gosto de framboesa!
Ora, quem não queria,
Em belos versos dessa mesma
Poesia, ter pensamento e autoria?

Num insulto a vilania
De indignação nos cobre,
Como rapina torpe,
Dos versos de Cecília se apropria.

Doce Cecília!Que versos!Uma fada!
Sorrateiro como bicho de peçonha,
Seus versos desfigura e de vergonha,
Vemos uma Cecília mutilada.

Assim de poetas, Floberla,
Lorca, de Patativa, sua Sina,
Uma oportunista mazela
Berra seus versos e assina.

Impossível dos autores não saber
Pois além fronteiras estão os versos
E não há neste universo
Quem não se indigne ao perceber.

Pode um ser esclarecido ao sortilégio
Querer, se não indigno,
O sucesso a qualquer custo, se não maligno,
Usar de baixo sacrilégio?

Só uma mente insana
Ou de mau caráter possuída,
Ousar de atitude vil,
Abominável e infame.

Será o único a não saber
Que ato inescrupuloso
É próprio ou mister
De maldito ou criminoso?

Se não bastante fora o plágio,
Por essa e mais uma dor,
Avilta a poesia o larápio
Em voz terrível usurpador.

Um poema para Diana

Não entendemos o suicídio.
Ouvimos, sabemos,
Mas não o entendemos.
Não o aceitamos.
Se alguém próximo e querido
Acomete-se desse ato,
A reação imediata é o espanto.
A consternação. Dor!
Para os que ficam
Por esse estranho mundo
Que nos humilha, nos enoja e fascina,
Quando nos transporta a consciência
Ao universo fantástico em que vivemos,
E nos revela nossa própria insignificância.
Heródoto nos alerta
Que por ser a vida trabalhosa,
A morte é para o homem
O mais desejado refúgio.
Deus nos dá a provar o doce da vida,
Mas logo sente inveja
Da sua própria dádiva.*
Pai da estratégia e crescente biografia,
Ao fim do esforço de uma vida,
Sabendo de sua Cartago aniquilada,
Depara-se Aníbal estratego na Bitínia.
Enfim traído e acossado,
Nova esquiva lhe furta o pensamento,
Mas apenas dita a Hiplos Barca, seu escravo:
Os que me amavam
E que eu amava estão mortos.
Tenho sessenta e quatro anos.
Eis uma bela idade para morrer.
A nuvem de poeira anuncia os romanos.
Livremo-los de suas inquietações,
Já que não têm paciência
De esperar pela morte
De um odiado ancião.
Cada um tem suas razões
De viver e morrer.
Não cabe a ninguém julgar.
Se lamentamos é porque amamos:
Não à conformidade da perda.
A sensibilidade individual
Estabelece o limiar entre vida e morte.
Cada um é dono de si.
Um poema para Diana.

*Juan Eslava Galán, historiador.

Para minha amiga Diana Vieira(in memória)

Poema do dia seguinte

Mãe!Agora o sorriso mais bonito.
Limiar de luz ao mais querido.
Tempo em que a vida se renova,
Elas ficam mais bonitas.
Anseio da vista primeira ao pequenino,
Afagar a pele de rosa,
Sentir a inocência do seu perfume,
A mão mínima segurar-lhe os dedos
E quem não se rende enternecido
À pureza dos seus olhos fixos?
Tempo feliz e trabalhoso.
Ao primeiro choro, sempre um alvoroço.
Seu chamado, sua única palavra.
Sobressalta-se pelas noites, sonolento,
Coração como um louco
Esquivando-se às arestas dos portais.
Nervos querendo sair do corpo,
E aflitivamente se vai.
A natureza chama por dentro
Ao socorro inadiável
Do indefeso rebento,
E, por favor, vá você,
É algo que não se diz.
Mas para o maior cansaço,
Há sempre maior recompensa,
Pois se findo choro inevitável
O pequeno dormir,
Que lágrima em olhos de pai não sorri,
Que coração aflito de mãe não fica feliz? (1)
Essa satisfação que a alegria nos dá,
Que revigora e nos alenta,
Pelo que a ciência explica,
É justo o néctar de vida.
É quando por dias a fio,
Quando noites tornam-se iguais aos dias
E os dias insistem em ser os mesmos,
Subitamente, ao fitar o filho,
E relembrar a biologia humana,
Dispõe-se o homem frente a si mesmo
E à grandeza do universo
Na perfeição do verdadeiro milagre,
Quando tudo começa na célula dividida.
Duas, quatro, enésimos pares sucessivos,
Eqüitativa e progressivamente,
Até que ao tempo certo
O homem se tornar vida. (2)

Dedicado a: Heitor Tiziani Roland

Clitos

A falange pelo oriente marcha.
Os olhos que a espreitam sobre o Granico
São da grega espada vendida,
Mêmnon, seus mercenários e medas.
Da Ásia estende-se a geografia,
“A mão sobre o metal da espada”.*
Atrás do ocaso começa a batalha,
Quando do persa buscando a coroa
E ao grego dar-lhe a vingança.

Já em Susa o triunfo e o excesso,
Já ao vinho o ateniense e o insulto,
Já aos brios Clitos o verso reprova,
Já Alexandre a ira quem impele,
Já ao chão é Clitos quem tomba,
Já ao peito ao ferro da lança.

Dura a culpa com o remorso,
Este por certo não sairá.
Se de Alexandre a alma lhe revolve,
Pois de Clitos a mão amiga,
No Granico impediu-lhe a morte certa
E da espada inimiga tem a lembrança.

*Jorge Luis Borges

Primeiras palavras

As primeiras palavras. O primeiro encontro.
Palavras que não acho deixam-me aflito.

Ela sorri. Ela é bonita!
A noite chega-nos a sós para meu espanto.

Nas palmeiras, o vento refrata como um grito.
Ela me envolve suave como um manto.

Brilham as luzes seus olhos coloridos.
Surpreende-me sua boca e me encanto.

Como não amar o sorriso doce, seu gesto querido?
Palavras como um rio fluem para as águas do seu remanso.

É certo, queria seu abraço e seu beijo.
Palavras inexatas alegram meu ouvido.

Quanto queria tê-la meu coração aflito!
A hora implacável proclama meu pranto.

E aquele sorriso que ainda vejo
Foram mais palavras que tenha entendido.

A noite em todos chega como um canto.
A mim como uma pena: deserto e consumido.

Onde estará a dona do meu desejo?
Desenho seu rosto nas nuvens sob o céu infinito.

Meu abraço solitário bem a quis.
Meus olhos beijado seus olhos vivos.

Como ter seu calor benfazejo?
Meu coração em seu peito o abrigo?

A lua redonda e baixa emoldura minha janela.
A noite meu anseio dolorido.

Porque esta noite eu bem a quis como aquela.
Minha alma insone reclama meu olhar perdido.

Sua imagem vem com a aurora e o luar.
Eu rindo de mim mesmo sem acalanto.

A poesia transcende tempo e espaço, matéria e espírito,
Mas eu sei que vou te amar.

O verso esquecido

Para tal ou qual verso comentado
Justo é momento de fortuna.
Lembrado, tal ou qual,
Este ou aquele verso,
Causou alguma impressão
Sobre o que valha sua mensagem.
Como nos sonhos que nos enternecem,
Ainda que não os lembremos de todo,
Mas ressoa onde é rico de sentimento.
Desafortunado verso.
Mas qual?Este ou aquele?
Como sabê-lo dentre os que lhe enviei?
Terá ela guardado?
Foi um presente a mais,
Algo que junto a outras coisas
O tempo empana,
Uma gaveta torna-o escuro?
Não importa.
Nenhuma memória mereceu.
Como fruto nenhum em chão inóspito,
O verso tem vida inglória.
Surdos são os que não ouvem ao apelo
Além da voz familiar;
São desatentos os adormecidos
Ao que excede o imediato,
A seus discípulos, pronunciou Heráclito.
E hoje ansioso ao verso esquecido,
Sofridos vislumbres de sua imagem,
Assim sem alma a face dos sonhos,
Uma palavra que lhe dê vida,
Como este ou aquele apenas,
Vaga pela minha memória.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Bentevis

Dois bentevis no alto da palmeira.
Um gorjeia, outro desce rasante,
Confunde-se numa rosa amarela.

O perigo. O ninho. O gavião.
Um bravo gorjeia: Tevi! Tevi!
Outro ataca, guerra no ar!
Bicadas e revolução.
Penas ao vento, foge o gavião.

Dois bentevis no alto da palmeira.
Um sobe ao céu.
Outro faz um cortejo.
Uma evolução, um gorjeio.
Dois bentevis, amor e natureza.

O que sobe eras tu.
O outro, o que beija,
Sou eu, minha rosa amarela.

A flor

Ah, esta boca! Este perfume...
Dos lábios e nesta boca
Cometas cruzam o céu à louca
E meu amor que vem a lume!

Deliram os sentidos os olhos brilham.
Ao êxtase o fogo o sangue atiça,
A pele faísca músculos estremecem
Na tempestade do amor a cobiça.

Ímpeto assim fizeste
Por ansiosas bocas beijos em fúria.
Revoam a volúpia e a luxúria
Dos espaços o calor e as vestes!

À luz e já ao desejo me gosta.
Delícia o macio e as curvas,
A fêmea que agora me mostra
Da tez seu cheiro e a vulva.

O anjo sorri e devaneia
Ao amor e à penumbra perfumada.
Pássaro ronda pela noite anseia
Dos jardins a rosa orvalhada.

Prepara-lhe carícia infinda
Gentil dedicado amor.
A gana então comedida
À graça de Vênus a flor.

Entrelaça os corpos o amor.
Aríete ardente as coxas roçam.
Rangem dentes, flexas caçam
Escuridão em já úmido calor!

O amor e as mãos devassam,
O orvalho rega, a mão aperta.
Queima e abraçam,
Os seios e a flor aberta.

Não existe o tempo e voa.
Ao pensamento apenas o amor,
Aos dois é uno e senhor,
Abraços ardentes e se ri à toa.

Alegria compartida

Só para ti, querida; só para ti.
Eu rego este jardim
Como o sol há de acordar o dia,
E a noite há de fechar seus olhos
E escolho as mais belas rosas para ti.

Tu, perfumada névoa envolta,
Sem esperar me invades.
Estás em mim como estrelas na noite!
Tornam-me este cometa
Teus olhos brilhantes
E a doçura da tua boca!

Tua alegria é a minha compartida.
Teu prazer é meu prazer,
Que se renova a cada dia,
Como o jardim abre-se em flor,
Quando me perco entre as flores
De tuas curvas decididas!

para Denize Tiziani

A necessária alegria

Quem, por seu motivo,
Ao coração da alegria o fluxo,
Análogo ao vinho se lhe retira o mosto,
Sentirá breve em seus dias,
A vida lhe diminuir aos poucos.
E mais à pele o sentimento,
Verá se esvair de todo.

Intrigado,
Só agora pude entender,
Como e porque
Morre-se de desgosto.
Sem vontade, sem sonho,
Sem prazer, sem o gosto.
Assim um rio secando
Flui menos a beleza e a força.

O rio é como nós somos:
A água abandona o rio,
Deixa lágrimas no barranco.
A alma abandona o homem,
Como a água a vida
Se nos vai de pronto.

Eu vi, não acreditei

Mês de maio,
Puxa vida, mês de maio...
Tristes avós e mãe!
Fim de tarde e já não era dia.
Foi em pleno sábado.
A Renata foi embora
Num sábado de alegria.
A pior notícia ouvida,
A mais sofrida dor,
Como dói esta dor!
Eu ouvi, não acreditei.
Nunca se acredita.
Ouve-se, mas não se acredita.
É o ráio que nos atinge mesmo.
O ráio fulminante que paralisa,
Rasga o peito e martiriza,
Nos faz vagar dez anos a ermo.
Como o que vi
No lago quatro vezes cair,
E pensei sem pernas:
Eu bem queria estar ali
Quatro vezes!
Sim, as pernas!
Faltaram mesmo as pernas,
Ou sumiu o chão aos pés.
Eu não era eu,
Não sei quem era.
Talvez algum demente,
Espectro errante de gente
Que a vida esqueceu
Ou levou embora.
A voz embarga,
A língua não deixa,
Vem à boca o amargo gosto
De súbito desgosto,
Que o vazio nos deixa.
A vista opaca, a mente turva.
A mente pensa em nada,
Os olhos enxergam o vácuo.
Os amigos nos cercam,
E vem o dopping,
E já não lembro
O que vi ou se era ilusão.
Sei que havia o caixão
Entre pessoas que conversavam mudas.
Eu não queria vê-la.
E vi uma criança
De rosto opaco à lembrança,
Que a dó das lágrimas cortinam.
Parte do meu ser
Que veio ao mundo
E me levou junto
Em dez de maio
De oitenta e seis.
Por que temos que ver?
Eu vi, não sei vi,
Não acreditei.
Nunca se acredita.

A vida é breve

Quão breve é toda vida humana,
Já que de toda a multidão
Que trouxe a estas praias,
Nenhum viverá dentro de cem anos.1
Palavras de Xerxes, como Dario
E Ciro, reis da fabulosa Pérsia,
Poderosíssimos homens em seu tempo,
São apenas lembrados em livros de história.

Sim...A vida é mesmo breve,
O poder é mesmo efêmero,
Implode em ambição mordaz,
O tempo consome a memória
Pouco tempo após.

O acúmulo de riquezas gera poder,
O poder pelo poder,
E tantos assim tiveram,
Quem foram, o que fizeram?
Não há poesia no poder.
Além da vaidade,
Apenas árido dever.
Salvo o florentino Lourenço
De Médicis, alavancou seu tempo
Com a arquitetura e as artes,
A virtuosa fortuna, sua poesia,
A humanidade agradece!
Digam-me outro nome!
Os feitos superam o homem,
Assinam no tempo seu nome,
E logo vem à cabeça
O testemunho do Parthenon, Coliseu,
As colunas da Grécia,
Expressão de um apogeu!

O tempo é fugaz,
Exaure o homem e a riqueza,
Mas se satisfaz
Quando persiste a beleza!

A que leva a vida de ostentação?
De nada adianta ostentação de fortunas,
Pois a ninguém o torna ilustre,
Precisam de mais exemplos
Do a vida já mostre?
Nada mais fútil do dinheiro a riqueza,
Sempre ou desde o tempo primeiro,
Nada mais sórdido que a avareza,
Árida vida de cultuar dinheiro.
É a grande frivolidade humana,
Seu grande equívoco,
Achar mesmo que nós
Sobreviveremos,
Apesar de todo o ouro que temos.

Diz Heráclito, o fragmentado Discurso,
Presença física não estabelece comunidade,
E que pobre é toda cidade
Se não persegue este espírito,
E saber que só em Florença
Há todos aqueles imortais.
Não há poesia nas fortunas,
Fortunas de apenas fortunas
De homens ocos com a face do vácuo.
De nada adiantam estátuas,
Nomes em ruas, bustos em pedestais,
Se à vida nada trazem de novo,
Não dizem valor à alma de um povo,
Qualquer fortuna, a face nos jornais.

Deste mundo suas razões,
Do homem a vaidade,
A mais pueril das paixões.
Não é filha do tempo,
A personalidade,
Mas do homem a postura,
A excelência de sua obra.2

Conta Plutarco que Alexandre
Com exército não numeroso,
Mas excepcional,
As falanges da Macedônia e um reino,
Tinha à mão Tebas e Atenas,
Reinos vizinhos...A Pérsia...A Ásia!
De tudo se desprendeu
Em doações as posses reais,
Sem ser tentado pelo ouro e seu tédio,3
Ao que inquiriu Pérdicas, o amigo general:
-E para ti, rei, o que conservas?
-A esperança!
-Pois a compartilharemos contigo,
Nós, teus camaradas de armas!4
Nem o vinho, nem o sono, nem o espetáculo,
Nem o amor eram capazes de detê-lo.
Prova-o sua vida, extremamente curta,
Digna dos heróis da Ilíada,
Digna da pena de Homero.
Preencheu sua vida inteira
Com uma profusão de grandes ações,
Da nossa cultura helênica, sua proteção,
De todos os feitos o mais belo.

Nada tem valor
Se não há a paixão,
Se não é verdadeiro,
Se não brilha por inteiro,
Se no homem não há encanto,
Se não se projeta com o coração.

Grandes homens, por que grandes?
Dedicaram seus dias
Por causa nobre, por isso grandes.
Abnegados ou enfrentaram a intolerância,
Mas viveram momentos épicos.
O tempo tarda
Mas faz jus à poesia
De seus nomes e seus dias.

Mas não bastam que seja pura
E justa a nossa causa.
É necessário que a pureza
E a justiça existam dentro de nós.5
Por mais prazerosa
Que seja sua vida,
Se você não sente
Que está construindo algo,
Não se tornará feliz.6
É preciso sobreviver
Para atingir a idade da realização,
Para ser feliz. Não vale sair
Antes do jogo terminar.7
É preciso trabalhar
Na beleza que perdure,8
Pois que a vida é breve,
Todo poder é efêmero,9
A alma é vasta.10

1. Xerxes, sétimo livro de Heródoto.
2. Federico Garcia Lorca.
3. Jorge Luis Borges
4. Plutarco, Vidas Paralelas.
5. Agostinho Neto, poeta angolano.
6. Amyr Klink.
7. Tom Jobim
8.Thiago de Mello
9. Nicolau Maquiavel.
10. Fernando Pessoa.

Dedicado a: Ivaldo Milhomem Roland e Antenor Barros Leal

A rosa dourada

O vestido branco o corpo lhe dourava
E eu sem saber como surgiu, em que instante.

Confundia-se aos astros no céu infinito,
Bela, surgiu única às outras.

Ela estava linda naquela noite!

Como brilho de uma estrela,
Ela estava linda naquela noite!

Em meio à multidão em enxame,
Surpreenderam-me seus olhos de diamante.

Seu corpo girava e ela estava feliz.
Podia sentir-lhe meu peito o coração querido.

Queriam meus olhos lhe beijar a boca rosada,
Meu coração dar-lhe o abrigo.

Meu olhar como náufrago
Derivava para a enseada do seu riso.

Como é alta esta barreira
Que perto nos separa agora!

Como dói não ter seu perfume
E ter de seus olhos o convite!

Já me inunda como oceano,
Um jorro de angústia incessante.

Quem é livre deste jorro que aparece,
Enche as veias e turva meus sentidos?

A noite segue a brisa do vento,
Voam as pessoas, a música dança seus risos.

Muito além das outras, todas de branco,
Ainda não lhe encobrem, musa do lume!

Tampouco, rosa, lhe tinge as pétalas,
Este coral de vozes secretas.

Ninguém. Só tu e eu, a lua parada,
Vimos todo o céu branco.

As luzes tornam iguais os rostos,
Mas em meu peito seus olhos escutam o canto.

Assim ela, seu corpo de sonho, eram só sorrisos,
E a noite tecia aos poucos os fios do meu castigo.

Quanto queria lhe falar em uma palavra,
Em breve sussurro, meu coração aflito!

Dos rostos, fogos, mil rostos,
Guardei-lhe a fina cintura, os olhos de diamante.

E agora pela noite apagada,
Choram meus versos, meu coração fendido.

Que amor poderíamos ter sido!
Ela era a mais linda naquela noite!

Assim um meteoro riscou o céu,
A multidão ficou deserta, e estou infeliz.

A nostalgia adona-se da alma,
O sereno avança pela noite.

“Posso escrever os versos mais tristes esta noite”.*

*Pablo Neruda

O canto do cisne

Fortaleza teus olhos brilham com intensidade
à luz da lua e o céu da cidade!

Apreensão é dona da alma,
alegria é brilho e impacto.
o entusiasmo efusiva a calma,
as luzes abrem a cena, inicia o ato.

Abrem-se as cortinas,
o espetáculo é magnífico!
O céu o lago espelha, os cisnes dançam,
ao pirouette, ao adágio entrançam.
O grand jeté, a sublimação.
A paz, o allegro e a luz,
o grand allegro a intensidade seduz,
o fouetté às águas em revolução.

São belos passos, são graciosos.
Ao palco leve tocam harmoniosos.
Na beleza do corpo contorço
não se percebe a força
do árduo trabalho da moça.
A graça delicada cortina o esforço.

No ensaio de cada dia,
a persistência, a disciplina sadia,
e a qualidade aperfeiçoam o artista.
Testemunham o suor e o tempo,
só nos revelam no mágico momento
ao espetáculo, às luzes e à vista!

A arte brinda, o momento é de festa,
ao júbilo e olhos em expressão como esta.
À comoção já delineia o movimento,
desliza suave a bailarina,
às cores a beleza descortina,
o canto do cisne, o último alento.

Mas vem a noite de um dia,
nem lua, nem noite sabia.
Uma bala sem disfarce ferina,
Mísera bala não perdida,
de Brasília é conhecida,
é disparada contra a bailarina.

Tinem os gládios, a futilidade,
a boçal cumplicidade
e covardia do prepotente.
A barbárie e vilania à razão se ocupam.
Homens ocos não se preocupam
com o valor da vida e morre o inocente.

Fortaleza teus olhos choram,
o coração assiste,
o estarrecer da rua, esta noite é triste.

Meu Deus, uma jovem bailarina!
Tão jovem tão linda!
Eu choro a ternura e canto a dor,
maldigo o homem que o tiro desfere,
a arte e a candura exaure,
rouba a vida e deixa o horror!

Só a mente insana,
capaz de estupidez tamanha,
por motivo fútil, notório e fugaz,
se arma de violência,
abuso e prepotência,
ao instante lhe brutaliza mordaz.

Tal era a ânsia de matar,
obsessão e fúria não o fazem pensar.
Tão logo na avenida emparelha,
sem que ao fato o júri releve,
a intenção lhe foi a mais breve,
pelos vidros dispara besta fera.

De frieza própria do grotesco,
moldura quadro dantesco,
mas o remorso lhe mostre vida ferina,
homem sinistro e escuso,
já que à índole se fez uso
assassino de uma bailarina.

De qualquer forma,
o homem que empunha uma arma
ao testemunho olhos da rua,
aponta a um casal e gratuito dispara,
senão este que outro nome terá
se a única arma era a sua?

O pai do algoz: Todo dinheiro gastarei!
A mãe de Renata: Só conheço o limite da lei.
A soberba insinua a própria arrogância.
Os limites da força é a demonstração,
à cidade se impõe humilhação,
métodos próprios da violência.

Em meio às agruras da cidade,
lutar sem temor pela verdade
contra o teatro que encena,
a mentira que se instala,
ouvidos surdos, a boca que cala,
esta luta deve valer a pena!

Onde está teu coração, cidade,*
Permite a vilania e a maldade
desonre tua alma, à vergonha atiça
e o demônio deixe o vazio e a dor?
Onde está teu amor,
que foi feito da justiça?

Sei a dor da perda do filho,
a vida nos priva seu brilho.
Agora dedicada artista perde a cidade
por um crápula à solta,
mais eu penso mais me revolta
na luta desigual dos pais pela verdade.

É preciso que muito se reflita,
ao bem a verdade seja dita.
A revolta do coração se apossa,
um maldito, o infortúnio e a sorte,
ao rumor de sangue e de morte,
a filha poderia ser nossa!

A dor é imensa e é grande o desgosto,
a consciência do júri não lhe mostra o rosto.
Palavras esquivas, a decência abomina,
porque o racional não absorve,
a justiça a vida não devolve,
e pasmem se a soltura o juiz determina.

Argumentem o que argumentem,
os fatos ao óbvio não mentem.
O ininteligível aqui se exemplifica,
à opinião a verdade mascara,
dá um sôco na nossa cara
e ao coração petrifica.

A torpeza é o espectro da violência,
a injustiça insulta a consciência.
A impunidade respalda monstros e horrores,
a responsabilidade é de quem tem o dever,
ao cidadão o direito de dizer:
Será que não sabem estes senhores?

Mas monstros mesmo
fazem da verdade o ermo.
Os senhores, os que maculam a toga!
De monstros permitem a impunidade,
a infâmia sobre nossa cidade,
sabe-se lá do que em troca!

A reflexão estarrece os sentidos,
assim incrédulos aturdidos,
afinal que valor tem a vida?
Que sociedade é esta,
sinistra e funesta,
Se com facínoras convive e abriga?

Sinto vergonha do meu país podre!
Tão belo tão podre!
Indigna saber estes fatos.
O grito do escárnio estremeça as mentes
de homens gelados e postura indecente.
De homens assim só se sente asco!

Estes são limites da tolerância
ante desonra que avança.
Do homem os valores corrói
tal fétida carniça,
pois sem justiça
nenhuma nação se constrói.

A esperança é a luz de uma canção,
Mas resta indignação
ao homem que perde o encanto
se falha a moral, a justiça e a ética,
os princípios em que se credita
para sociedade justa e da liberdade um canto.

Fecham-se as cortinas,
termina o espetáculo.
Não há aclamação para este ato,
o cisne morreu de fato.

Se a injustiça denigre a nação,
das bibliotecas rogo o maldito,**
dos céus lhes caia o pesar infinito,**
ficam a dor, lamento e indignação.

A justiça dos homens é sábia.
Dito assim parece até que nos conforta.
Pode até errar mesmo sábia
e a bailarina está morta!

Fortaleza teus olhos choram, o coração assiste
as lágrimas da vergonha, esta noite é triste.

Fortaleza, 01 de dezembro de 1999
Poema para Renata Braga, a bailarina
assassinada na Avenida Beira-Mar
em Fortaleza na madrugada
de 28 de dezembro de 1993,
apresentado às Rodas de poesia
no Centro Cultural Dragão do Mar em 28.12.1998
com a presença das entidades contra a violência, amigos e parentes de Renata.
O assassino continua impune.

Agradecimentos
Ivaldo Milhomem Roland,
Oneide Braga de Carvalho(mãe da bailarina),
Escola de balé Madiana Romcy,
Antenor Barros Leal,
George Júnior Barros Leal,
e aos transeuntes anônimos
da avenida Beira-mar.
*Thiago de Mello, A cara da cidade.
**IR, versos do poema Fortaleza.

Dedicado a: Renata Braga, 20 anos, bailarina. Assassinada em Fortaleza em 28 de dezembro de 1993.
Data:
21/11/2001

A cultura de guerra (cultiva rosas de Hiroshima)

Percorre o tempo, os nervos, os ares,
A interminável cultura de guerra.
Avizinham-se os temores,
A devastação, seus horrores.
A paz chora breve
Um rio de sangue sobre a terra.
De que valem Hiroshima,
Os mortos da arma química?

Constrói-se um muro, aviltam-se paixões.
Criam-se monstros, separa-se o mundo.
A fragilidade da vida,
“A morte que nossa carne teme”,*
Sonho latente no concreto do berço:
São os silos da morte!
Novo século de uma mesma era.
Novo presidente, nova forma de guerra.
Os juros pagam a sofisticação das armas,
Mas quem nos paga pela ameaça constante?

Ainda rende dividendos a guerra do Golfo.
Após o Vietnã, Camboja, o Laos,
Estão craterados o solo afegão, suas montanhas.
O que vem depois do Iraque, Venezuela?
Outra vez a Coréia?A Amazônia?
Alguém descubra logo nas galáxias,
Vazão para a indústria bélica americana.

Da guerra são vãs as convenções.
Da paz, as organizações e o discurso.
Ainda que se argumente, ainda que se grite,
É vão o protesto e o esforço.
São vãos o dinheiro e o desperdício.
São vãs a fome crescente e duas filosofias.

De que valem o Afeganistão, a Somália,
Os desaparecidos da América Latina,
Os descartáveis da próxima guerra,
O Irã, o Iraque, Israel, a Palestina,
Se o saldo de sempre
É o lucro do belicoso,
Os mortos da hipocrisia?
De que vale uma egoísta democracia,
Se o que nos sobra
São tensões: a política sórdida,
o camuflado terrorismo: a vida contida,
E a beligerância?

De que valem Hiroshima,
Os mortos da arma química,
Milhares de vidas mutiladas
E oito milhões de vítimas;**
A criança vietnamita pelo NAPALM queimada,***
O horror, o verdadeiro horror
Em sua face estampado,
Os mortos da guerra cínica?

Aos meus amigos Ema Cieda e George Barros Leal e os pequenos Geórgia e Davi
*Jorge Luis Borges.
**Dados de Larry Mosqueda, jornalista norteamericano,
em seu artigo Shocked & Horrofied sobre mortes civis
causadas por bombas das forças americanas, excluído o Afeganistão.
http://www.commondreams.org/
***Arma química desenvolvida pelos EUA, contrária ao Tratado de Genebra.

Dedicado a: Dedicado a: Aos amigos Ema Cieda, George Barros Leal, David e Geórgia
Data: 23/12/2001

Os dias mudos

"Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, não há ninguém que explique e ninguém que não entenda."
Cecília Meireles

A névoa já se dissipa sobre a terra.
O sol brilha cabeças metálicas
De homens gélidos e faces opacas.
Ao céu agudas pontas de sabres
Atrás de escudos e emblemas caveiras,
Suas insígnias de batalha.
Vieram como tropel de dez mil cavalos,
O ruído intimidador de cascos
Num choque de romanos e cartagineses.
Mas não há cartagineses, não há romanos.
Apenas vozes. Estudantes. Professores.
Apenas frio nas veias e ecos nas paredes!

Indignações e ódios,
Maldições e escárnios.
Ao reitor militar, intolerante,
Já cruzam os ares quinze mil palavras!
A arena fervilha, a assembléia se inicia.
Sobre a mesa muitos nomes e a planilha
Entre flores do campus ao meio dia.
O moço tem a palavra, ele tem sede.
Como tem sede de palavras o moço!
Os ares se inflamam, o momento é incerto.
Olhar atento, ouvidos abertos,
A multidão tensa lhe é toda silêncio,
As palavras já ressoam como trombetas!

Dos estudantes a universidade,
O que era antes:
Salas, laboratórios,
Livros, microscópios,
O que o conhecimento encerra
Já sob cacetetes e sabres
Explode em campo de guerra.

Do saber lhes era o recanto:
A discussão, os jardins, o bucólico.
Agora o caos e o espanto,
O prejuízo e a dor
Que cabeça insana dita e ordena,
Espalha o medo e o terror.
Avança a bestial tropa e a fúria.

A multidão é dispersa e atônita.
Moças pelos cabelos à mercê das botas
Aos indefesos olhares e gritos de injúria.
Centelhas e estampidos.
Querem sair os nervos do corpo.
Estarrecem os olhos, é grande o alarido.

Besta fera solta a trucidar.
Feridas em gotas, cérebros em flocos,
Cacetetes nos corpos,
Balas pelo ar!

Na paisagem repousava o olhar:
No campus as flores,
No céu tons de cores.
Antes ao tranquilo caminhar
Vivemos os estudos e os amores.
Hoje ao dia tenso e ao clamor,
Os arbítrios do algoz, o pavor,
E nossa voz que não quer calar!
De perseguições, os absurdos,
De agora tristes dias, os dias mudos,
E cheiram a morte pelo ar.

Trepida toda a praça,
Mas o horror sepulcra o alvoroço.
Dos livros já sobe a fumaça.
No chão o corpo inerte do moço.

A razão ao léu,
Vencem os fuzis as canetas.
A barbárie na terra, fumo ao céu
E o regozijo das bestas.

O céu é lindo!
Esta tarde é triste.
Um amigo ao limbo
E padece quem assiste.

Por que chora o companheiro,
Tão tenso seu rosto?
Então não sabes?
Honestino Guimarães é morto.

Homenagem a Honestino Guimarães, estudante da Universidade de Brasília, desaparecido em 10 de outubro de 1976.
Frase da preferência:”Os poderosos podem matar uma, duas, até três rosas, mas jamais deterão a primavera”. (Che Guevara).

Páscoa e chocolate

Ah, os chocolates!
Comi já muito da Kopenhagen.
Todos uma delícia!
Meus preferidos puro chocolate:
Os que avelã é o recheio...
Outro meio-amargo escuro.
Que o diga minha atrevida barriga!
Não sei quanto ainda a natureza ajuda,
Ou se já há mudanças no futuro.
O sol, à francesa taciturno,
Entre densas nuvens,
Levou o calor e a luz.
Nem saudou o dia
Surpreso pela chuva.
A terra sedenta e muda,
Bem agradece ao céu escuro.
Gosto do sol, mas não ligo.
Olho pela janela sem camisa,
Vejo flores de cores vivas
Em verdes ramos já mais verdes,
Curvados com chuva.
Dos insetos em revoada,
Alegres, festejam bem-te-vis.
Uma bola estronda ao pé do muro!
São crianças brincando,
Molhadas...Rio de suas risadas
Correndo pela chuva!
Doce e súbita é a lembrança
Do tempo ido que não cansa.
Quão árida deve ser a cidade,
Sem praças...Sem verde...
Sem pássaros...Riso de crianças!
O que ora entristece a gente:
Sempre de sem tetos uma notícia.
Sem ser piegas ou maçante,
Por receio e resoluto,
Que oitava economia, dizem,
Deixa sem amparo, sem opção,
Vindos do barranco inseguro,
Desolados com a enchente
No inevitável viaduto?
Mães...Outras crianças...
Talvez agora órfãos...
É a outra janela, quem lamenta?
São dois Brasis:
Um que almoça, outro que espreita...
Um que embolsa, outro que aumenta!
Aqui, na paz deste teto,
Embora isso, nenhum apuro...
Estou feliz? Eu agradeço.
Sinto angústia, mas não frio.
Enquanto lá fora digo:
-Sabem, sou do Brasil...
-Oitava economia!
Aqui se bem pudesse diria,
Sem temer a cidade,
Os altos muros:
Boa Páscoa, irmãos!
E brindar vinho tinto
Com chocolate escuro!

Os homens sem escrúpulos

Nós somos os homens sem escrúpulos.
Vivemos pelo fausto deslumbrados
E ávidos por tudo beneméritos,
Mas somos da verdade sempre esquivos,
Aqueles da mentira sempre dúbios.

Infortúnio é somente o descuido,
Quando escroques nos revela de pronto.
Sem índole, sem remorso,
Sem pena, sem dor,
Sem brio, sem honra.
Mesquinhos e venais,
Obtemos o que queremos
Por qualquer meio escuso.

Nós somos os homens sem escrúpulos.
Nosso caminho funda-se e é respaldo
Da universal infâmia.
O vácuo como essência.
O ar solene abraçamos,
Mas sob o ouro da arrogância
Não há nada.

Aqui é a terra dos homens sem escrúpulos,
Aqui a ética não brota.
O jardim que a aparência esmera,
Do mal miméticas flores cultiva.
Enquanto movem-se espectrais pelo cinismo,
Riso por nossas bocas desditas.
E na ânsia pelo lucro indevido
Funesto regozijo habita:
O sucesso a qualquer custo,
Nada mais importa.
Somos o aborto da ganância.
Nossa real emoção caracterizam as cifras.
O malefício em nós impregnados,
Palavras inexpressas o perfil proclama,
Sua inumerável face:
Corruptos de toda ordem
Para todos os fins.
Bajuladores e outros mentirosos.
Farsantes. Plagiadores.
Grileiros. Contrabandistas.
Estelionatários. Fraudadores.
Perversores. Perniciosos.
Certos senhores da justiça
Que fazem da verdade o ermo.*
Criminosos de toda espécie.
Tiranos. Falsos democratas,
Os que vêm mérito em governar miséria.
Aparentamos tantos e somos os mesmos,
Somos os homens sem escrúpulos.

Quando poderosos,
Mais inescrupulosos somos,
Avessos a qualquer virtude escassa,
E usufruimos da facilidade
Porque nos servem gente lacaia.
Condição que se esmera
Substantiva do próprio degrado
Nos mais desprezíveis da terra.
E mais servis são pelas migalhas
Que nossa vilã soberba lhes amassa.
Por isso também sem brio, sem honra,
Sem pena, sem dor,
Sem índole, sem remorso.
E na baixeza dos meios empregados,
Somos execráveis de todo,
Somos de todo falsos ilustres.
Nós, lacaios e poderosos,
Somos iguais inescrupulosos
De mesma escória formados,
Idênticos vazios de alma.
Somos todos vis de mesma laia!

Ao suborno dos responsáveis,
Das cidades infringimos os códigos,
Sem que se saiba o mal que causamos
E a hipocrisia veicula
como numa alusão a pródigos;
Das terras nos apropriamos;
Poluímos o ar e a água;
Extinguimos os índios e devastamos florestas,
Causamos a fome de milhares e injúria
Ao lesar tesouros
E o ludíbrio das pátrias.
Somos tais os carentes do amor de mãe,
Também do valor do próprio pai,
Como os párias sem culpa,
Tampouco são como nós somos,
Frios de mau caráter,
Em todas as línguas de igual significado:
Somos os autênticos filhos da puta!

A morte do rio

"Querem trazer o rio São Francisco para o Ceará,
mas não salvam o riacho Pajeú, berço de Fortaleza". Christiano Câmara

Quando um rio chora,
Chora de verdade,
Bem poucos conseguem ver.
Em seu silêncio de morte,
Pela perda cristalina,
Chora lágrimas tão espessas
Que ora parecem suas águas
Ter seu fluxo estancado.
Na riqueza de sons em que existia,
Mata e água eram música,
Mas desabitado de cardumes,
Sua água sem troca
Sem a vida que guardava,
Encolheu-se em soluço
Pardacento e opaco
Nas breves borbulhas de suas grotas.
Então o rio segue só
Inerte em sono que já não desperta
Suas cascatas sem canto.
Sem sonhos, sem ímpeto,
Sem marolas no barranco.
Aí chora lágrimas tão sentidas
Como desconsolo de dar dó.

O rio fica mudo.

Como quem só respira pela boca
Segue em passo trôpego.
Já quase não flui
Pelo lixo maldito que o sufoca.
Se pouco pode correr,
Assim todo dia morre um pouco,
Já quase não agita os braços,
O rio náufrago perdendo fôlego.

E a cada vez que vem a chuva,
Desprotegido das copas,
Impiedosa lhe desbarranca,
Deixando o leito sempre mais raso
Em choro baixo de lamúria.
É caça se entregando à morte.
Em últimos estertores esperneia
Com a terra já pelo pescoço
Garganta em sangue é presa segura.

O rio enfim agoniza.

Incrédulo quem só agora o vê,
O rio réptil gravemente ferido
Pela areia seca que quase lhe suga,
Mal se esgueira ao próximo poço
Por triste filete que ainda lhe corre.

Quem o viu caudaloso
Tardio lhe causa espanto,
Pois só agora toma consciência
Que é assim que o rio morre.

Termópilas

À frente das várias nações submissas,
Do persa o escravagista intento.
Miríade armada à recusa grega
Partiram da Ásia e a sórdida premissa.

A Europa como meta,
A passagem era a Grécia.
Liberdade não com ouro, mas à espada,
Não concebem rei expulso de Esparta,
Demaratos nem o persa.

Já vendida a grega Jônia;
Do trácio Efialtes a traidora senda.
Por míseros metros de terra
De vermelho tinge o delírio e a escarpa,
A Lacedemônia coesa e austera.

A decisão pelas Termópilas.
Honram o sacrifício os altos estreitos:
As sábias horas de Leônidas
À frente de apenas nove mil gregos!*

Vencem a cizânia após e a ofensiva
Cem mil gregos livres em Platéias.
Salva a Hélade e a democracia,
Do espelho a dor contida
Daqueles homens as mulheres.

*Heródoto, Guerras pérsicas.

Os contínuos combates contra os exércitos do império persa,
Revezados de duas em duas horas
Por guerreiros de cada cidade grega livre,
Ocorreram numa clareira interior do
Monte Calidromos, a oudenos chorion, a terra de ninguém,
Onde comportava uma frente de sessenta
Homens ombro a ombro, escudo a escudo,
Não importando aos gregos
O que estava além dessa linha,
Os quinhentos mil invasores.